Cinema

O cinema envolve diversas práticas e variadas teorias que se relacionam com outras artes como a literatura, a escultura, o teatro, a música, a pintura, por isso é considerado a sétima arte. O alcance do cinema excede seu propósito artístico e transforma-se também em ferramenta de propagação da ciência e da cultura ou de propaganda política. É também um campo profissional que envolve ampla rede de atividades, sejam as ligadas ao cinema propriamente dito, como os diretores, roteiristas, montadores, sound designers, fotógrafos, técnicos de som direto, entre outros. Além disso, existem outras profissões relacionadas a ele de alguma maneira, como captadores, fornecedores de materiais, advogados, distribuidores, conservadores, reguladores e formadores. O setor de formação é aquele que prepara os profissionais para o trabalho no cinema, é aqui que o CAAD se insere.

No curso de Cinema de Animação e Artes Digitais, o cinema exerce uma papel estrutural que auxilia o aluno a compreender as bases formativas da imagem em movimento: a linguagem cinematográfica. A área conta com disciplinas de Roteiro, Panorama do Cinema, Fundamentos da Linguagem Audiovisual, Montagem e Edição e Sound Design, que são do núcleo básico comum a todos os alunos do curso, além de disciplinas optativas que reforçam e ampliam o conhecimentos como a relação entre Ator e Câmera, Campo Profissional, Cinema Experimental, Autores e Estilos Cinematográficos e disciplinas avançadas oferecidas junto à pós-graduação, na linha de pesquisa em Cinema.

A área possui uma ligação muito próxima com a pós-graduação e a pesquisa na área de Cinema e Arte e Tecnologia da Imagem, com alguns alunos que sairam de antigo curso de habilitação em cinema de animação e se destacaram como pesquisadores, entre eles Adriana Bicalho (Profa. da EBA-UFMG), Adriana de Barros Ferreira Cunha, Alexandre Martins Soares, André Reis Martins, Antonio César Fialho de Sousa (Professor da EBA-UFMG), Claudia Jussan, Conceição Bicalho (Professora da EBA-UFMG), Fernando Rabelo, Marcelo La Carretta, Maurício Gino (Professor da EBA-UFMG), Simon Brethè (Professor da EBA-UFMG) e Daniel Leal Werneck (Professor da EBA-UFMG).

Leitura complementar indicada pelo Prof. Luiz Nazario:

CARTA DE ROLAND BARTHES A MICHELANGELO ANTONIONI
Bolonha, 1980.

Caro Antonioni…

Na sua tipologia Nietzsche distingue duas figuras: o padre e o artista. Padres temo-los hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; e os artistas? Gostaria, caro Antonioni, de lhe pedir emprestados, por um instante, alguns traços da sua obra que me permitirão fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes que constituem a meu ver o artista. Passo a enumerá-las: a vigilância, a sabedoria e a mais paradoxal de todas, a fragilidade.

Ao contrário do padre, o artista espanta-se e admira; o seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento. É por você ser um artista que a sua obra está aberta ao Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de combate contra o velho mundo e os seus valores comprometidos; mas para si o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, bem pelo contrário, uma dificuldade ativa para conseguir as mudanças do tempo, não apenas ao nível da grande História, mas no interior dessa pequena História cuja medida é a existência de cada um de nós. Começada logo após a última guerra, a sua obra seguiu assim, em cada momento, segundo um movimento de dupla vigilância, ao encontro do mundo contemporâneo e de si mesmo; cada um dos seus filmes foi, à sua própria escala, uma experiência histórica, ou seja o abandono de um antigo problema e a formulação de uma nova pergunta; quer isto dizer que você viveu e tratou a história dos últimos trinta anos com subtileza; não como a matéria de um reflexo artístico ou de um compromisso ideológico, mas como uma substância, a que você queria captar o magnetismo de obra em obra. Para si, os conteúdos e as formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. O social, o narrativo, o neurótico, são apenas níveis, pertinências, como se diz em linguística, do mundo total, que é o objeto de todo o artista: há sucessão, não hierarquia dos interesses. Para falar com propriedade contrariamente ao pensador, um artista não evolui. Varre, à maneira de um instrumento muito sensível, o Novo sucessivo que lhe apresenta a sua própria história: a sua obra não é um reflexo fixo, mas uma luminosa ondulação onde passam segundo a inclinação do olhar e as solicitações do tempo, as figuras do Social e do Passional, e as das inovações formais, do modo de narração ao emprego da Cor. A sua inquietação pela época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas antes a de um utópico que procura perceber em termos exatos o mundo novo, por que deseja esse mundo e quer já fazer parte dele. A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância de desejo.

Chamo sabedoria do artista não a uma virtude antiga e ainda menos ao discurso medíocre, mas pelo contrário ao saber moral, à acuidade de discernimento que lhe permite não confundir nunca sentido e a verdade. Quantos crimes a Humanidade não cometeu em nome da Verdade! E, todavia, essa verdade era apenas um sentido. Quantas guerras, repressões, terrores, genocídios, para o triunfo de um sentido! O artista, esse, sabe que o sentido de uma coisa não é a sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poder-se-ia dizer, dado que ela o retira da comunidade, do rebanho dos fanáticos e dos arrogantes.

Nem todos os artistas terão, porventura, essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista chama-se geralmente realismo. Assim, ao declarar (numa entrevista com Godard): “sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam de todo realistas”, você testemunhava ter um sentimento exato do sentido: não o impunha, nem o abolia. Tal dialética dá aos seus filmes (vou empregar de novo a mesma palavra) uma grande sutileza: a sua arte consiste em deixar sempre aberta a via do sentido, e até certo ponto indecisa, por escrúpulo. É nisto que você cumpre com precisão a tarefa do artista de que o nosso tempo tem necessidade: nem dogmático, nem insignificante. Assim, nos seus primeiros curtas-metragens sobre os varredores de Roma ou o fabrico têxtil em Torviscosa, a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se dissolver, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, dos corpos no trabalho. Em Il Grido (O grito), o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a incerteza mesma do sentido: a errância de um homem que não pode confirmar a sua identidade em parte nenhuma e a ambiguidade da conclusão (suicídio ou acidente), levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem. Essa fuga do sentido, que não é a sua abolição, permitiu-lhe, a si, abalar a rigidez psicológica do realismo. Em Deserto Rosso (Deserto vermelho), a crise já não é uma crise de sentimentos, como em L’Eclisse (O eclipse), porque os sentimentos são, aí, firmes (a heroína ama o seu marido): tudo se entretece e dói numa zona segunda onde os afetos – a doença dos afetos – escapam a essa armadura do sentido que é o código das paixões. Enfim – para andar depressa – os seus últimos filmes trazem a crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos (Blow Up – Depois daquele beijo) ou das pessoas (Professione: Reporter – Profissão repórter). No fundo, ao longo da sua obra, há um crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido que se chama destino.

Essa vacilação – preferiria dizer com mais exatidão: essa síncope do sentido segue vias técnicas propriamente fílmicas (décor, planos, montagem) que não me cabe analisar, porque não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que é que a sua obra, para além do cinema, compromete todos os artistas do mundo contemporâneo: o seu trabalho torna sutil o sentido do que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não se detém grosseiramente na coisa dita, mas se desloca sempre para mais longe, fascinado pelo fora-do-sentido, é, creio, a convicção de todos os artistas, cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas esse fenómeno estranho, a vibração. O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso num dito do pintor Braque: “O quadro está terminado quando apaga a ideia.” Penso em Matisse desenhando, da sua cama, uma oliveira, e pondo-se, ao fim de algum tempo, a observar os espaços vazios entre os ramos, e descobrindo que através desta nova visão, escapava à imagem habitual do objeto desenhado, ao estereótipo “oliveira”. Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor ainda, que capta o objeto figurável no instante raro em que o a plenitude da sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício. De certa maneira, a sua arte é ela também uma arte do Interstício (L’Avventura – A aventura seria a demonstração brilhante desta afirmação), e por isso, de certa maneira também, a sua arte tem alguma relação com o Oriente.

Foi o seu filme sobre a China que me deu vontade de viajar até lá; e se esse filme foi provisoriamente rejeitado por aqueles que deveriam ter compreendido que a sua força de amor era superior a toda a propaganda, foi porque o julgaram segundo um reflexo de poder e não segundo uma exigência de verdade. O artista não tem poder, mas tem certa relação com a verdade; a sua obra, sempre alegórica se é uma grande obra, toma-a como um manto; o seu mundo é o Indireto da verdade.

Porque é que esta sutileza do sentido é decisiva? Precisamente porque o sentido, assim que é fixado e imposto, logo deixa de ser sutil, converte-se num instrumento, num lance do poder. Sutilizar o sentido é, pois, uma atividade política segunda como o é todo o esforço que vise triturar, perturbar, desfazer o fanatismo do sentido. Coisa que não é destituída de perigo. Assim, a terceira virtude do artista (utilizo o termo “virtude” no sentido latino) é a sua fragilidade: o artista nunca tem a certeza de viver, de trabalhar; proposição simples, mas séria: a sua eliminação é uma coisa possível.

A primeira fragilidade do artista é esta: faz parte de um mundo em mudança e está, ele mesmo, também em mudança; é banal, mas para o artista é vertiginoso, porque não sabe se a obra que propõe é produzida pela mudança do mundo ou pela mudança da sua subjetividade. Você esteve sempre consciente, assim parece, dessa relatividade do Tempo declarando, por exemplo, numa entrevista: “Se as coisas de que falamos hoje não são aquelas de que falávamos logo a seguir à guerra, é porque, de fato, o mundo à nossa volta mudou, e porque também nós mudámos. Mudaram as nossas exigências, os nossos propósitos, os nossos temas.” A fragilidade aqui é a de uma dúvida existencial, que se apodera do artista à medida que ele avança na sua vida e na sua obra; essa dúvida é difícil, dolorosa até, porque o artista não sabe nunca se o que quer dizer é um testemunho verídico sobre o mundo tal como mudou ou o simples reflexo egoísta da sua nostalgia ou do seu desejo: viajante einsteiniano, jamais sabe se é o comboio ou o espaço-tempo que se move, se é testemunha ou homem de desejo.

Outro motivo de fragilidade é, paradoxalmente, para o artista, a firmeza e a insistência do seu olhar. O poder, qualquer que seja, porque é violência, não olha nunca; se olhasse um minuto mais (um minuto demais), perderia a sua essência de poder. O artista, esse, detém-se e olha longamente. Chego a imaginar que você se fez cineasta porque a câmara é um olho, constrangido, por disposição técnica, a olhar. Aquilo que você acrescenta a essa disposição, comum a todos os cineastas, é um olhar para as coisas radicalmente, até à sua exaustão. Por um lado, você olha longamente, para o que não lhe era pedido que olhasse, nem pela convenção política (os camponeses chineses) nem pela convenção narrativa (os tempos mortos de uma aventura). Por outro lado, o seu herói privilegiado é aquele que olha (fotógrafo ou repórter). Isso é perigoso, porque olhar mais tempo do que aquilo que nos é pedido (insisto neste suplemento de intensidade) perturba todas as ordens estabelecidas, quaisquer que sejam, na medida em que, normalmente, mesmo o tempo do olhar é controlado pela sociedade; donde, quando a obra escapa a esse controlo, a natureza escandalosa de certas fotografias e de certos filmes: não os mais indecentes ou os mais agressivos, mas simplesmente os que têm mais tempo de pose.

O artista está, portanto, ameaçado, não apenas pelo poder constituído – o martirológico dos artistas censurados pelo Estado ao longo de toda a História, seria desesperantemente longo – mas também pelo sentimento coletivo sempre possível, de que uma sociedade pode muito bem passar sem arte: a atividade do artista é suspeita porque perturba o conforto, a segurança dos sentidos estabelecidos, porque é ao mesmo tempo dispendiosa e gratuita, e porque a sociedade nova que se procura, através de regimes tão diferentes, ainda não decidiu o que deve pensar, o que terá que pensar do luxo. A nossa sorte é incerta, e essa incerteza não tem uma relação simples com as saídas políticas que possamos imaginar para o mal-estar do mundo; depende dessa História monumental, que decide de uma maneira que às vezes mal se concebe, não tanto as nossas necessidades, mas os nossos desejos. Caro Antonioni, tentei dizer na minha linguagem intelectual as razões que fazem de si, para além do cinema, um dos artistas do nosso tempo. O louvor não é simples, como sabe; porque ser artista, hoje, é uma situação que deixou de ser sustentada pela boa consciência duma grande função sagrada ou social. Não é sequer tomar assento serenamente no Panteão burguês dos Faróis da Humanidade; significa, no momento de cada obra, dever encarar em si esses espectros da subjetividade moderna, que são, desde que deixamos de ser padres, o abatimento ideológico, a má consciência social, a atração e a repulsa da arte fácil, o temor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e a gregaridade. É preciso, portanto, que você, hoje, aproveite este momento tranquilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma coletividade se põe de acordo para reconhecer, admirar, amar a sua obra. Porque amanhã o trabalho árduo continua.

Roland Barthes